Hitler não limpava o rabo a meninos

 

A História não deve ser nunca apagada e não nos podemos iludir pois os seus grandes protagonistas continuam a ser os homens menos escrupulosos e que ganharam o seu lugar sobretudo graças a práticas espúrias. É o caso de Adolfo Hitler, cuja biografia trouxe da nossa biblioteca e que é leitura para o resto do meu fim de semana.

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Este trabalho monumental de Ian Kershaw, que é uma síntese de um seu trabalho académico, mostra-nos o 'Fuher' (ou seja, o líder) sem filtros moralistas ou oportunisticamente de leitura fácil, procura manter-se acima de qualquer juízo moral e esmiúça sobretudo os factos, avisando mesmo para o cuidado a ter relativamente aos depoimentos diretos (inclusive os dos próprio Hitler). É, por isso, uma obra rara, cuidada e grande.

Em síntese, e mais sobre a personalidade que propriamente sobre os métodos que levaram à sua ascensão política, Kerkshaw fala-nos de um Adolfo que falhou várias vezes a admissão à Academia de Belas Artes de Viena, que viveu em quartos esconsos enquanto copiava postais para vender nos cafés, que não sabia comer de faca e garfo, vegetariano depois de ter engordado na prisão, leitor compulsivo de jornais e de livros do faroeste e que foi 'salvo' da quase indigência pela I Guerra Mundial, onde se destacou como estafeta, não entregando pizzas obviamente mas mensagens, conseguindo aí a sua primeira condecoração e a promoção a cabo (a promoção a sargento perdeu-se na burocracia).

Amante de ópera, que via de pé, nos lugares mais baratos, apaixonado de Wagner, Adolfo não foi propriamente um líder político canónico: desleixado com a organização, mas brilhante a discursar, com aquela chispa que faz destacar os grandes oradores (sobretudo quando o palco são cervejarias), mesmo quando lhes falta conteúdo. Hitler acabou por ser favorecido pelas conjunturas - primeiro a crise que assolou a Alemanha no pós guerra e depois o efeito do crash de Wall Street em 1929, que atirou a economia alemã para níveis de inflação incríveis e provocou a quebra da moeda. Mas sobretudo o seu partido medrou graças ao quadro político alemão, em regra caótico. O ditador esteve várias vezes, mesmo nesses períodos favoráveis, a um passo do abismo mas foi sobrevivendo até conseguir o cargo de chanceler (quando o seu partido andava na cota dos 36% e parecia não ir mais longe) num governo de coligação. Quando se apanhou lá em cima, tornou-se imparável, eliminando mesmo alguns daqueles que fizeram consigo o caminho das pedras e potenciado a máquina de propaganda que o ajudou a chegar ao poder, onde chegou rico, graças aos direitos da sua autobiografia, 'Mein Kampf', enorme bestseller que naquele tempo teria pulverizado qualquer veleidade do José Rodrigues dos Santos nesta área específica. Curiosamente, 'A Minha Luta' não vendeu mais que 18 mil exemplares na sua primeira edição...

Eu sei que são muitas páginas mas se tiverem oportunidade, passem por esta biografia. E reflitam, tentando perceber como um artista falhado vindo de uma obscura aldeia austríaca, filho de um amanuense, cujo filme preferido era o 'King Kong', conseguiu sobreviver a vários falhanços até se tornar a maior figura da história do século XX, prometendo permanecer nos anais nos próximos séculos.