Um anjo caiu do céu na forma de mecânico da BMW


Voltei agora ao Cabo do Mundo depois de 19 dias em terras do norte alentejano, espaço que vamos começar a dividir com a nossa terra. Não temos mar por ali mas temos o Tejo que aqui veem desde o Alamal, as ribeiras, os caminhos, os montes, as laranjas que caem da árvore diretamente para o nosso sumo na rua onde agora estamos, onde temos, no jardim próximo, uma pequena biblioteca em forma de gaiola de pássaro da qual já me servi através da leitura da biografia de Stephen King e de um bestseller de 2020 sobre o tatuador de  Auschwitz, onde estive, algures no último quartel do século passado, com a minha camarada Sílvia Freches, aproveitando um intervalo da digressão do Benfica a Katowice (a cerca de 100 quilómetros).

Nestes 19 dias de adaptação a outro mundo, não me senti um prisioneiro de um campo de morte e apenas senti o gostinho da liberdade e dos grandes espaços. Numa aldeia do concelho de Gavião, Comenda, que já começou também a ser nossa. Ao segundo ou terceiro dia, conheci o presidente da Câmara de Gavião, que andava em campanha no Vale da Feiteira, tentando convencer a malta da freguesia da Comenda a votar no candidato do PS (que tinha perdido por um mas conseguiu mais um voto na secretaria) embora sem sucesso (a malta da Ferraria deu-lhe um xito), o novo presidente da junta poucos dias depois tentou-nos vender uma casa e, claro, não deixámos de ser a notícia da aldeia. Esperamos que em breve deixemos a primeira página do 'Jornal da Comenda', tanto mais que já lá temos o terreno e a casinha onde vamos montar a nossa segunda base.
Não vou dizer que não gostei de voltar aqui ao Cabo do Mundo. Matosinhos é a minha terra, estas são as minhas gentes, mas, convenhamos, daqui até à Comenda são apenas 280 quilómetros e se apanhar o comboio às 11 em Gavião/Belver às 15 estou em Campanhã por apenas 12 euros (seis daqui a seis aninhos). E como é bom andar de comboio, sobretudo no TGV que vai parando no Entroncamento para nos dar boleia.
Aqui chegado, o popó da patroa não se dignava dar sinais de vida, depois de três semanas parado. Chamada a assistência, o Emanuel, do alto do seu metro e noventa, saiu da carrinha, caminhou lentamente até ao automóvel, de bloco na mão, e sem reagir a três tentativas de boa tarde passou dois minutos a examinar a viatura sem lhe abrir o capô. Por fim, decidiu-se. Foi à carrinha buscar um aparelho, pousou-o em cima do motor e começou a acarinhar o carrito.
- Meu menino, o que tens, diz lá ao Emanuel o que tens?
Tenho uma testemunha que pode garantir que foi mesmo assim.
Tentei tirar nabos da púcara mas o Emanuel não tugiu nem mugiu. Mais um longo silêncio e ei-lo que entra no carro, dá à chave e o carro começa a trabalhar.
- Já posso ir dar uma volta com ele? - perguntei.
- Calma, calma, deixe-o recuperar devagarinho - lá me disse.
Outro silêncio e...
- Vá, meu menino, já está aqui o Emanuel, tu vais recuperar!
Não resisti e armei-me em mecânico de aviões. A resposta que tive foi mais ou menos esta:
- O Emanuel é que sabe. Vai ficar tudo bem com ele mas não o pode deixar tanto tempo sem trabalhar. Precisa de carinho todos os dias. E nem pense em usar carregadores de telemóveis chineses que esta eletrónica não aguenta.
- Amor - atirou para a mulher, que esperava na carrinha -, já está tudo bem com ele. Agora - e desta vez para mim - pode dar a tal voltinha.
Lá dei. O bólide estava vivo como nunca, caramba!
- Pronto, está tudo bem, amigo, cuide deste menino, ele precisa de atenção todos os dias e tu, meu menino, se precisares chama aqui o Emanuel, ok? - despediu-se o grandalhão Emanuel claramente desinteressado nesta eminência que assina este artigo.
Estas coisas parecem irreais mas são a vida. São o que levamos desta vida. Seja aqui, seja na Comenda.