O sítio da Boa Nova faz parte do imaginário não apenas da população de Leça da Palmeira. É uma das muitas “finisterras” que se assinalam na costa norte atlântica da Península Ibérica que sobrevive sempre reinventando-se. Sítio “mágico”, especial, o destes penedos acantonados sobre um mar em visão de 180 graus. É o mar sobretudo que ali importa, não tanto a terra suavemente ondeante que ali começa ou acaba em praias rochosas e de pouca areia fina.
“Boa Nova” é um nome moderno que sucedeu ao de S. Clemente das Penhas, sendo
tudo o que se retém na memória colectiva. Mas para trás estarão certamente outros nomes, outros sinais, outros propósitos e diferentes discursos. Mas não ousemos avançar por esse caminho porque “um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar por inteiro” (1).
Na Boa Nova do hoje que já é ontem persiste uma certa maravilha que resulta do espaço natural e aberto, selvagem quase, e também de três referências que podemos de certa forma sublimar: a Casa de Chá imaginada nos anos 50 do século XX por Siza Vieira, a capela que simboliza o velho eremitério de frades menores que ali viveram na transição do século XIV para o XV e os versos de António Nobre cravados num rochedo entre os dois edifícios:
Na Praia lá da Boa Nova, um dia
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto castelo, o que é a fantasia
Todo de lápis-lazúli e coral!
É certo que entender o “maravilhoso” remete-nos para o reconhecimento adequado do próprio termo (2), embora o poeta de “Só” nesta simples quadra diga muito sobre o “espírito” do lugar, ele que, à sua maneira, viveu nele a experiência que hoje alguns arqueólogos chamam “dwelling”. A forma como o poeta leu, absorveu e reescreveu o lugar importa muito. É uma espécie de documento histórico, onde se reproduz a transcendência de um lugar que nas páginas seguintes também precisa de ser “estoriado” pois o património não pode ser apenas objecto de uma leitura técnica. Tanto mais que, está visto, o homem é capaz de edificá-lo apenas com palavras (será esse o grande mal?)
Partindo do princípio que a realidade humana “é evanescente por definição e a sua observação e explicação também” (3) – e aqui já estamos a somar uma proposição a uma conclusão –, sente-se ainda hoje nos penhascos da Boa Nova o impulso de parar o relógio. Como aconteceu quando, em 1992, por ocasião do 600.º aniversário da instalação dos franciscanos no local, se passou para a pedra um “frame” dessa realidade humana perdida e que ainda assim somos tentados a querer observar. No que não foi mais que um momento de adição patrimonial num sítio que também se reinventa quando é recordado.
Esta pedra epigrafada que hoje passa despercebida entre os “chorões” apenas evoca. Ao contrário da lápide com os versos de Nobre, que provocam. Mas tanto a efeméride como a poesia se inspiram, embora em planos distintos, no tal breve momento de 83 anos que deixou poucas sobrevivências materiais mas grandes valências culturais.
“Desde 1392 que existia, na solidão inóspita dos areais da Boa Nova, apartado do convívio terreno para de todo se entregarem aos louvores e culto de Deus, um mosteiro dos Frades Menores da Observância, chamado S. Clemente das Penhas” (4).
Atente-se que o próprio historiador, ainda imbuído de resquícios românticos, se deixa “contaminar” pela poesia de um lugar ainda hoje considerado ideal para os jovens casais de namorados, numa reclusão apartada também voluntária do mundo, tal como a dos frades da Baixa Idade Média, mas numa modalidade de amor bem mais telúrica.
“Meditei nos frades, no convento, no refúgio dos desamparados do mundo, nas lápides profanadas que mãos ímpias arrancaram de sobre as cinzas de muitos corações, extintos com o segredo de sublimes torturas. Meditei, e maldisse a civilização (…). A minha angústia era ainda imensa, por que eu não podia dispensar-me de Deus, e dos homens, que apontavam o caminho de melhor mundo (5).”
Camilo Castelo Branco, no terceiro quartel século XIX, também por aqui e também aqui se deixou impressionar por um sítio então ainda mais retirado do Mundo e da civilização. Espaço sem tempo para quem não tem tempo, de sons uterinos, mar e vento, vento e mar, sal e sol, sol e sal. A música do silêncio.
Não se faça esperar mais a entrada do protagonista. Não é o Património. Mas apenas aquele que o provoca. Antes e depois, num “durante” aparentemente interminável, de memórias reinventadas, de vivências partilhadas, de histórias sem escrita, de escrita com estórias. Num processo, tal como W. Benjamin referiu, de permanente “reaurização”.
O convento franciscano de S. Clemente das Penhas, por seu lado, nunca ousou ser mais que o lugar. Por isso as palavras “conventinho” e “modesto” são repetidas por muitos autores que a ele se referiram. Modesto e minimal, sim, mas nem por isso menos significante. Rezam as crónicas que Afonso V se deslocou “ao humilde mosteirinho de S. Clemente em peregrinação”, após uma batalha (Toro) em que o rei saiu derrotado e o filho (o futuro D. João II) vencedor.
A S. Clemente também chamaram oratório de que sobrou a “triste e romântica ermidinha” moderna (6), a tal “capelinha à beira-mar” que António Nobre cantou e onde quis construir um torreão que não pôde erguer na eira e que fez “debaixo do chão”.
Tomemos como referência duas datas: 1392 – a da instalação no lugar de um pequeno punhado de frades – e 1481 - embora documento do séc. XVII (7), relativo ao processo de transferência do convento, fale apenas em 83 anos de utilização “da praça de S. Clemente, colocando o fim deste 1.º ciclo em 1476. Pouco importa.
Gonçalo Marinho foi o frade fundador desta pobre “ermida do glorioso S. Clemente”, conforme ainda Manoel da Esperança. Localizada, como descreve, num sítio “inculto”, “desabrido” e “estéril”, onde os frades “nem água tinham para beberem se não a de uma fonte que lhes ficava longe”. Os penhascos defronte dos quais a ermida se implantou já eram conhecidos por S. Clemente (naturalmente das penhas). Resguardo do vento mas nem sempre das vagas alterosas que tornavam mais dura a vida do pequeno grupo de frades que aproveitou a penedia para abrir as suas celas (ainda hoje se podem perceber algumas dessas marcas).
Tanto mar, tanta solidão. E o deserto desejado pelos anacoretas. De que se ocupavam os frades? Meditavam, escreviam livros, rezavam. Uma rotina invariável quer no rigoroso Inverno quer nos picos do estio. Esta inclemência vivida em S. Clemente ditou o fim do eremitério. A ordem dos franciscanos crescia em influência, gozava de privilégios reais e garantiu melhor colocação, na margem direita da foz do rio Leça, mais ao abrigo dos ventos, longe das marés vivas. Do deserto para a placidez do preguiçoso Leça que se abria em dois braços (o doce e o salgado) antes do mergulho oceânico.
“O frade minore, ao contrário dos seus irmãos religiosos das ordens mais antigas, ao sair do espaço conventual, da recolecção claustral e da segurança da cela, partiu pelos caminhos da vida e do mundo como um peregrino, sofrendo, ensinando, orando, cantando, pregando, levando a humildade seráfica e a sua força de vida junto daqueles que eram mais esquecidos pelo clero tradicional (…) A pobreza, a caridade e a alegria foram as virtudes essenciais do apostalado franciscano e os elementos definidores de uma personalidade colectiva única” (8).
Ainda segundo Vítor G. Teixeira, 1214 é uma data que resulta de uma “lenda duvidosa” que atribui a S. Francisco a fundação desta ordem em Portugal, concretamente em Bragança. Dois anos depois fundam-se eremitérios em Alenquer, Guimarães e Coimbra, sendo provável a fundação do convento de Évora em 1224 e o de Leiria em 1233. Seguem-se Covilhã, Guarda, Estremoz, Santarém, Portalegre, Lamego…e as famosas clarissas de Vila do Conde em 1317.
O acto fundacional de- S. Clemente das Penhas, em 1392, resulta de um movimento de regresso à matriz da ordem fransciscana, com a adopção da observância, quase por oposição à regra claustral. Um movimento recorrente nesta ordem mendicante, que conheceu ondas sucessivas de “purificação”, com o regresso ao ascetismo original.
Mosteiró, em Valença, conhece a primeira revivificação, no final do século XIV, deste momento que, no caso, desceu da Galiza para o Norte de Portugal. Seguiu-se logo a fundação de outros eremitérios: S. Paio do Monte (Cerveira), Nossa Senhora da Ínsua (Caminha), S. Francisco do Monte (Viana do Castelo) e S. Clemente das Penhas. Todas eles formados por pequenas comunidades que nunca excederiam os 10/12 frades
Este regresso ao deserto, à solidão e à meditação – numa época em que se declaram os primeiros sintomas renascentistas – corresponde também a uma espécie de rebate de consciência, quando alguns religiosos decidem romper com o estar no Mundo de um clero que engordava com os impostos que cobrava em nome de Deus. Alguns séculos depois, vemos algumas estrelas de Hollywood trocarem o mundanismo por conventos de monges tibetanos.
“Os recintos são sítios construídos, mantidos e eventualmente transformados ao longo de períodos variáveis de tempo, por vezes em pontos destacados da paisagem, ou seja, marcos incontornáveis de referência visual” (9).
O que resta hoje do recinto que foi S. Clemente das Penhas é aparentemente quase nada – o sítio está a pedir uma prospecção geofísica para apurar eventuais estruturas – mas a verdade é que temos “matéria” para imaginando fazermos a nossa reconstrução. Repare-se na moderna referência visual sobre os penhascos que abrigaram os frades, no topo do qual se construiu também um farol de que restam as fundações. No final do primeiro quartel do séc. XX, ali se construiu uma torre quadrada de três andares com uma lâmpada verde luz branca fixa que esteve 8 anos em funcionamento, acabando os seus breves dias como caserna de alunos-faroleiros.
O novo farol, de 46 metros de altura, instalado 200 metros a Sul, começou a varrer o mar com três lampejos intervalados 14 segundos, 57 metros acima do nível marinho, com um alcance máximo de 28 milhas. Ao mesmo mais tarde foi anexado um forte sinal sonoro, obtido através de duas trompas sopradas por dois compressores a que o povo dava o nome de “Ronca”. Cinco segundos terríficos sobretudo para as crianças mas não tanto como os intervalos de silêncio de 14 segundos. Sim, porque bem pior que o medo é a certeza de que algo de terrível está a chegar…
Os frades “minores” que ali viveram também teriam os seus, em noites de poderosa invernia, nas trevas, com os demónios transformados em salpicos marinhos. Imaginamo-los deitados nas suas pobres enxergas, cobertos por gastos mantos de burel, gelados pelo medo e pelo frio. Mas também os podemos supor em dias solares, com o olhar pousado no Oeste, contemplando um mar bêbado de azul e em breve não tão infinito quanto se julgava.
“(…)Não há memória colectiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: as nossas impressões afastam-se umas às outras, não há nada que fique no nosso espírito e não compreenderíamos que pudéssemos rever o passado se ele não se conservasse com efeito pelo meio natural que nos envolve” (10).”
Três planos sucessivos, três “realidades”. A ermida moderna que simboliza o antigo eremitério, a casa de chá da Boa Nova desenhada por Álvaro Siza em 1954 e o farol de Leça de que se falou atrás. Podendo ainda ver-se, na foto, as novas urbanizações nascidas recentemente, que preencheram finalmente o largo espaço entre a velha povoação de Leça da Palmeira e os penhascos de S. Clemente.
A casa de chá-restaurante da Boa Nova caiu nas mãos do arquitecto Siza Vieira de forma quase acidental pois o projecto foi entregue inicialmente a Fernando Távora. Compromissos que este tinha no estrangeiro motivaram a sua aposta no então jovem arquitecto.
“O processo de projectar, no início, faz-se de forma muito global, quase nebulosa. Portanto, o que vem de referências não é citação; é a carga que tem o nosso computador pessoal e intransmissível” (11)
A Casa de Chá-Restaurante da Boa Nova é a 9ª obra de Siza Vieira, sucedendo à cozinha da casa da avó, ao portão da casa do tio, ao quarto de banho da casa de Irene Gramacho, a quatro habitações em Matosinhos, ao centro paroquial de Matosinhos, a um projecto não concretizado, ao jazigo da família Siza e à casa de Carneiro de Melo no Porto. Ainda estava longe o projecto da igreja de Santa Maria, no Marco de Canaveses, mas já Siza Vieira pisava terreno sagrado, no caso concreto do projecto da casa de chá dividindo a penedia com a velha ermida.Curiosamente, a este projecto seguir-se-ia a piscina da Quinta da Conceição, em 1958. Realizando, deste modo, o mesmo percurso dos frades franciscanos que abandonaram S. Clemente e se foram instalar na então chamada Quinta da Granja, onde ergueram o Convento da Conceição “em louvor da Senhora Mãe de Deus”, deixando em S. Clemente apenas a ermida e “desfazendo” tudo o resto” (12). Uma coincidência que se regista.
A ordem dos diversos planos é relativa em relação ao tempo para o utente deste espaço aberto onde a terra acaba e o mar começa. Os edifícios como que nascem do maciço rochoso onde as ondas se abatem neste pedaço da orla costeira hoje encravado entre uma refinaria e um porto artificial que transformaram radicalmente não apenas a paisagem mas que nem por isso “transformaram” quer a velha ermida, quer os modernos farol e casa de chá, quer a visão romântica e fatalista de um poeta maior das nossas letras.
Ainda sobre a casa de chá…
“A sala se a memória separou as cores dos sentidos era verde verde limosa como as paredes de um poço, os rostos apagaram-se num filtro de espuma pouco a pouco foram fendendo a treva era assim nas noites a lembrança da noite nos corpos em brasa o toque das línguas nas bocas ásperas de sal, depois os copos chocalhavam luziam em nossas mãos embaciavam-se desapareciam” (13).
Quase cinco séculos depois, do estirador de um arquitecto saiu mais um edifício que sobressaiu das pedras nesta espécie de palimpsesto de arquitecturas e funcionalidades.
“Primeiro”, a ermida e as celas dos monges.
Depois, o farol que ilumina o mar.
Agora, a “casa incomum” de janelas abertas para o horizonte.
E, antes da chegada do avanço urbanístico, a leitura do poeta António Nobre talvez como maior contributo para a “captura” de um passado de que nos queremos sempre apoderar mas que acaba sempre por se escapar na corrente das palavras, soprado por um vento que nos empurra sempre para onde não queremos ir…
Resta esperar. Um lugar como este certamente terá mais para somar a um sítio onde homens quiseram fazer um deserto tendo apenas como certo a infinitude do mar e do espaço.
1 – Cf. Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, Coimbra, 2005, p. 57
2 – Cf. Jacques Le Goff, O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval, 2010, Lisboa, p. 15
3 – Cf. Vítor Oliveira Jorge, “Das Sete Vidas do Objecto”, Revista da Faculdade de Letras do Porto (Departamento de Ciências e Técnicas do Património”, 2003, pág.84
4 – Cf. Guilherme Felgueiras, Monografia de Matosinhos, 1957, Matosinhos, pág. 364
5 – Amor de Salvação, 1864, Lisboa, pág. 93
6 – Cf. Guilherme Felgueiras, Monografia de Matosinhos, pág. 368
7 – Cf. Fr. Manoel da Esperança, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S.
8 – Cf. Vítor Gomes Teixeira, O Maravilhoso no Mundo Franciscano Português da Baixa Idade Média, Estarreja, 1999
9 – Cf. Susana Oliveira Jorge, O Passado é Redondo, 2005, S. M. da Feira, pág, 169
10 – Cf. Halbwachs, 1968
11 – Cf. Siza Vieira, Abril de 2005, “Diário de Notícias”
12 – Cf. Fr. Manoel da Esperança, 1666, Lisboa
13 – Cf. Mário Cláudio, “Homenagem ao Arquitecto Álvaro Siza Vieira”, 2005, Porto
* relatório para a disciplina de "Teoria do Património", regida pelo prof. dr. Vítor Manuel de Oliveira Jorge, do Mestrado de Arqueologia, FLUP
“Boa Nova” é um nome moderno que sucedeu ao de S. Clemente das Penhas, sendo
tudo o que se retém na memória colectiva. Mas para trás estarão certamente outros nomes, outros sinais, outros propósitos e diferentes discursos. Mas não ousemos avançar por esse caminho porque “um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar por inteiro” (1).
Na Boa Nova do hoje que já é ontem persiste uma certa maravilha que resulta do espaço natural e aberto, selvagem quase, e também de três referências que podemos de certa forma sublimar: a Casa de Chá imaginada nos anos 50 do século XX por Siza Vieira, a capela que simboliza o velho eremitério de frades menores que ali viveram na transição do século XIV para o XV e os versos de António Nobre cravados num rochedo entre os dois edifícios:
Na Praia lá da Boa Nova, um dia
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto castelo, o que é a fantasia
Todo de lápis-lazúli e coral!
É certo que entender o “maravilhoso” remete-nos para o reconhecimento adequado do próprio termo (2), embora o poeta de “Só” nesta simples quadra diga muito sobre o “espírito” do lugar, ele que, à sua maneira, viveu nele a experiência que hoje alguns arqueólogos chamam “dwelling”. A forma como o poeta leu, absorveu e reescreveu o lugar importa muito. É uma espécie de documento histórico, onde se reproduz a transcendência de um lugar que nas páginas seguintes também precisa de ser “estoriado” pois o património não pode ser apenas objecto de uma leitura técnica. Tanto mais que, está visto, o homem é capaz de edificá-lo apenas com palavras (será esse o grande mal?)
Partindo do princípio que a realidade humana “é evanescente por definição e a sua observação e explicação também” (3) – e aqui já estamos a somar uma proposição a uma conclusão –, sente-se ainda hoje nos penhascos da Boa Nova o impulso de parar o relógio. Como aconteceu quando, em 1992, por ocasião do 600.º aniversário da instalação dos franciscanos no local, se passou para a pedra um “frame” dessa realidade humana perdida e que ainda assim somos tentados a querer observar. No que não foi mais que um momento de adição patrimonial num sítio que também se reinventa quando é recordado.
Esta pedra epigrafada que hoje passa despercebida entre os “chorões” apenas evoca. Ao contrário da lápide com os versos de Nobre, que provocam. Mas tanto a efeméride como a poesia se inspiram, embora em planos distintos, no tal breve momento de 83 anos que deixou poucas sobrevivências materiais mas grandes valências culturais.
“Desde 1392 que existia, na solidão inóspita dos areais da Boa Nova, apartado do convívio terreno para de todo se entregarem aos louvores e culto de Deus, um mosteiro dos Frades Menores da Observância, chamado S. Clemente das Penhas” (4).
Atente-se que o próprio historiador, ainda imbuído de resquícios românticos, se deixa “contaminar” pela poesia de um lugar ainda hoje considerado ideal para os jovens casais de namorados, numa reclusão apartada também voluntária do mundo, tal como a dos frades da Baixa Idade Média, mas numa modalidade de amor bem mais telúrica.
“Meditei nos frades, no convento, no refúgio dos desamparados do mundo, nas lápides profanadas que mãos ímpias arrancaram de sobre as cinzas de muitos corações, extintos com o segredo de sublimes torturas. Meditei, e maldisse a civilização (…). A minha angústia era ainda imensa, por que eu não podia dispensar-me de Deus, e dos homens, que apontavam o caminho de melhor mundo (5).”
Camilo Castelo Branco, no terceiro quartel século XIX, também por aqui e também aqui se deixou impressionar por um sítio então ainda mais retirado do Mundo e da civilização. Espaço sem tempo para quem não tem tempo, de sons uterinos, mar e vento, vento e mar, sal e sol, sol e sal. A música do silêncio.
Não se faça esperar mais a entrada do protagonista. Não é o Património. Mas apenas aquele que o provoca. Antes e depois, num “durante” aparentemente interminável, de memórias reinventadas, de vivências partilhadas, de histórias sem escrita, de escrita com estórias. Num processo, tal como W. Benjamin referiu, de permanente “reaurização”.
O convento franciscano de S. Clemente das Penhas, por seu lado, nunca ousou ser mais que o lugar. Por isso as palavras “conventinho” e “modesto” são repetidas por muitos autores que a ele se referiram. Modesto e minimal, sim, mas nem por isso menos significante. Rezam as crónicas que Afonso V se deslocou “ao humilde mosteirinho de S. Clemente em peregrinação”, após uma batalha (Toro) em que o rei saiu derrotado e o filho (o futuro D. João II) vencedor.
A S. Clemente também chamaram oratório de que sobrou a “triste e romântica ermidinha” moderna (6), a tal “capelinha à beira-mar” que António Nobre cantou e onde quis construir um torreão que não pôde erguer na eira e que fez “debaixo do chão”.
Tomemos como referência duas datas: 1392 – a da instalação no lugar de um pequeno punhado de frades – e 1481 - embora documento do séc. XVII (7), relativo ao processo de transferência do convento, fale apenas em 83 anos de utilização “da praça de S. Clemente, colocando o fim deste 1.º ciclo em 1476. Pouco importa.
Gonçalo Marinho foi o frade fundador desta pobre “ermida do glorioso S. Clemente”, conforme ainda Manoel da Esperança. Localizada, como descreve, num sítio “inculto”, “desabrido” e “estéril”, onde os frades “nem água tinham para beberem se não a de uma fonte que lhes ficava longe”. Os penhascos defronte dos quais a ermida se implantou já eram conhecidos por S. Clemente (naturalmente das penhas). Resguardo do vento mas nem sempre das vagas alterosas que tornavam mais dura a vida do pequeno grupo de frades que aproveitou a penedia para abrir as suas celas (ainda hoje se podem perceber algumas dessas marcas).
Tanto mar, tanta solidão. E o deserto desejado pelos anacoretas. De que se ocupavam os frades? Meditavam, escreviam livros, rezavam. Uma rotina invariável quer no rigoroso Inverno quer nos picos do estio. Esta inclemência vivida em S. Clemente ditou o fim do eremitério. A ordem dos franciscanos crescia em influência, gozava de privilégios reais e garantiu melhor colocação, na margem direita da foz do rio Leça, mais ao abrigo dos ventos, longe das marés vivas. Do deserto para a placidez do preguiçoso Leça que se abria em dois braços (o doce e o salgado) antes do mergulho oceânico.
“O frade minore, ao contrário dos seus irmãos religiosos das ordens mais antigas, ao sair do espaço conventual, da recolecção claustral e da segurança da cela, partiu pelos caminhos da vida e do mundo como um peregrino, sofrendo, ensinando, orando, cantando, pregando, levando a humildade seráfica e a sua força de vida junto daqueles que eram mais esquecidos pelo clero tradicional (…) A pobreza, a caridade e a alegria foram as virtudes essenciais do apostalado franciscano e os elementos definidores de uma personalidade colectiva única” (8).
Ainda segundo Vítor G. Teixeira, 1214 é uma data que resulta de uma “lenda duvidosa” que atribui a S. Francisco a fundação desta ordem em Portugal, concretamente em Bragança. Dois anos depois fundam-se eremitérios em Alenquer, Guimarães e Coimbra, sendo provável a fundação do convento de Évora em 1224 e o de Leiria em 1233. Seguem-se Covilhã, Guarda, Estremoz, Santarém, Portalegre, Lamego…e as famosas clarissas de Vila do Conde em 1317.
O acto fundacional de- S. Clemente das Penhas, em 1392, resulta de um movimento de regresso à matriz da ordem fransciscana, com a adopção da observância, quase por oposição à regra claustral. Um movimento recorrente nesta ordem mendicante, que conheceu ondas sucessivas de “purificação”, com o regresso ao ascetismo original.
Mosteiró, em Valença, conhece a primeira revivificação, no final do século XIV, deste momento que, no caso, desceu da Galiza para o Norte de Portugal. Seguiu-se logo a fundação de outros eremitérios: S. Paio do Monte (Cerveira), Nossa Senhora da Ínsua (Caminha), S. Francisco do Monte (Viana do Castelo) e S. Clemente das Penhas. Todas eles formados por pequenas comunidades que nunca excederiam os 10/12 frades
Este regresso ao deserto, à solidão e à meditação – numa época em que se declaram os primeiros sintomas renascentistas – corresponde também a uma espécie de rebate de consciência, quando alguns religiosos decidem romper com o estar no Mundo de um clero que engordava com os impostos que cobrava em nome de Deus. Alguns séculos depois, vemos algumas estrelas de Hollywood trocarem o mundanismo por conventos de monges tibetanos.
“Os recintos são sítios construídos, mantidos e eventualmente transformados ao longo de períodos variáveis de tempo, por vezes em pontos destacados da paisagem, ou seja, marcos incontornáveis de referência visual” (9).
O que resta hoje do recinto que foi S. Clemente das Penhas é aparentemente quase nada – o sítio está a pedir uma prospecção geofísica para apurar eventuais estruturas – mas a verdade é que temos “matéria” para imaginando fazermos a nossa reconstrução. Repare-se na moderna referência visual sobre os penhascos que abrigaram os frades, no topo do qual se construiu também um farol de que restam as fundações. No final do primeiro quartel do séc. XX, ali se construiu uma torre quadrada de três andares com uma lâmpada verde luz branca fixa que esteve 8 anos em funcionamento, acabando os seus breves dias como caserna de alunos-faroleiros.
O novo farol, de 46 metros de altura, instalado 200 metros a Sul, começou a varrer o mar com três lampejos intervalados 14 segundos, 57 metros acima do nível marinho, com um alcance máximo de 28 milhas. Ao mesmo mais tarde foi anexado um forte sinal sonoro, obtido através de duas trompas sopradas por dois compressores a que o povo dava o nome de “Ronca”. Cinco segundos terríficos sobretudo para as crianças mas não tanto como os intervalos de silêncio de 14 segundos. Sim, porque bem pior que o medo é a certeza de que algo de terrível está a chegar…
Os frades “minores” que ali viveram também teriam os seus, em noites de poderosa invernia, nas trevas, com os demónios transformados em salpicos marinhos. Imaginamo-los deitados nas suas pobres enxergas, cobertos por gastos mantos de burel, gelados pelo medo e pelo frio. Mas também os podemos supor em dias solares, com o olhar pousado no Oeste, contemplando um mar bêbado de azul e em breve não tão infinito quanto se julgava.
“(…)Não há memória colectiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: as nossas impressões afastam-se umas às outras, não há nada que fique no nosso espírito e não compreenderíamos que pudéssemos rever o passado se ele não se conservasse com efeito pelo meio natural que nos envolve” (10).”
Três planos sucessivos, três “realidades”. A ermida moderna que simboliza o antigo eremitério, a casa de chá da Boa Nova desenhada por Álvaro Siza em 1954 e o farol de Leça de que se falou atrás. Podendo ainda ver-se, na foto, as novas urbanizações nascidas recentemente, que preencheram finalmente o largo espaço entre a velha povoação de Leça da Palmeira e os penhascos de S. Clemente.
A casa de chá-restaurante da Boa Nova caiu nas mãos do arquitecto Siza Vieira de forma quase acidental pois o projecto foi entregue inicialmente a Fernando Távora. Compromissos que este tinha no estrangeiro motivaram a sua aposta no então jovem arquitecto.
“O processo de projectar, no início, faz-se de forma muito global, quase nebulosa. Portanto, o que vem de referências não é citação; é a carga que tem o nosso computador pessoal e intransmissível” (11)
A Casa de Chá-Restaurante da Boa Nova é a 9ª obra de Siza Vieira, sucedendo à cozinha da casa da avó, ao portão da casa do tio, ao quarto de banho da casa de Irene Gramacho, a quatro habitações em Matosinhos, ao centro paroquial de Matosinhos, a um projecto não concretizado, ao jazigo da família Siza e à casa de Carneiro de Melo no Porto. Ainda estava longe o projecto da igreja de Santa Maria, no Marco de Canaveses, mas já Siza Vieira pisava terreno sagrado, no caso concreto do projecto da casa de chá dividindo a penedia com a velha ermida.Curiosamente, a este projecto seguir-se-ia a piscina da Quinta da Conceição, em 1958. Realizando, deste modo, o mesmo percurso dos frades franciscanos que abandonaram S. Clemente e se foram instalar na então chamada Quinta da Granja, onde ergueram o Convento da Conceição “em louvor da Senhora Mãe de Deus”, deixando em S. Clemente apenas a ermida e “desfazendo” tudo o resto” (12). Uma coincidência que se regista.
A ordem dos diversos planos é relativa em relação ao tempo para o utente deste espaço aberto onde a terra acaba e o mar começa. Os edifícios como que nascem do maciço rochoso onde as ondas se abatem neste pedaço da orla costeira hoje encravado entre uma refinaria e um porto artificial que transformaram radicalmente não apenas a paisagem mas que nem por isso “transformaram” quer a velha ermida, quer os modernos farol e casa de chá, quer a visão romântica e fatalista de um poeta maior das nossas letras.
Ainda sobre a casa de chá…
“A sala se a memória separou as cores dos sentidos era verde verde limosa como as paredes de um poço, os rostos apagaram-se num filtro de espuma pouco a pouco foram fendendo a treva era assim nas noites a lembrança da noite nos corpos em brasa o toque das línguas nas bocas ásperas de sal, depois os copos chocalhavam luziam em nossas mãos embaciavam-se desapareciam” (13).
Quase cinco séculos depois, do estirador de um arquitecto saiu mais um edifício que sobressaiu das pedras nesta espécie de palimpsesto de arquitecturas e funcionalidades.
“Primeiro”, a ermida e as celas dos monges.
Depois, o farol que ilumina o mar.
Agora, a “casa incomum” de janelas abertas para o horizonte.
E, antes da chegada do avanço urbanístico, a leitura do poeta António Nobre talvez como maior contributo para a “captura” de um passado de que nos queremos sempre apoderar mas que acaba sempre por se escapar na corrente das palavras, soprado por um vento que nos empurra sempre para onde não queremos ir…
Resta esperar. Um lugar como este certamente terá mais para somar a um sítio onde homens quiseram fazer um deserto tendo apenas como certo a infinitude do mar e do espaço.
1 – Cf. Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, Coimbra, 2005, p. 57
2 – Cf. Jacques Le Goff, O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval, 2010, Lisboa, p. 15
3 – Cf. Vítor Oliveira Jorge, “Das Sete Vidas do Objecto”, Revista da Faculdade de Letras do Porto (Departamento de Ciências e Técnicas do Património”, 2003, pág.84
4 – Cf. Guilherme Felgueiras, Monografia de Matosinhos, 1957, Matosinhos, pág. 364
5 – Amor de Salvação, 1864, Lisboa, pág. 93
6 – Cf. Guilherme Felgueiras, Monografia de Matosinhos, pág. 368
7 – Cf. Fr. Manoel da Esperança, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S.
8 – Cf. Vítor Gomes Teixeira, O Maravilhoso no Mundo Franciscano Português da Baixa Idade Média, Estarreja, 1999
9 – Cf. Susana Oliveira Jorge, O Passado é Redondo, 2005, S. M. da Feira, pág, 169
10 – Cf. Halbwachs, 1968
11 – Cf. Siza Vieira, Abril de 2005, “Diário de Notícias”
12 – Cf. Fr. Manoel da Esperança, 1666, Lisboa
13 – Cf. Mário Cláudio, “Homenagem ao Arquitecto Álvaro Siza Vieira”, 2005, Porto
* relatório para a disciplina de "Teoria do Património", regida pelo prof. dr. Vítor Manuel de Oliveira Jorge, do Mestrado de Arqueologia, FLUP